terça-feira, junho 02, 2009

Introdução à Anti-Psiquiatria



Introdução à Anti-Psiquiatria


PARTE I:

A anti-psiquiatria começa a se formar no final dos anos 50, é nomeada como tal por Cooper em 1967, época em que foram produzidas muitas mutações sociais, muitas das quais continuaram nos estranhos, belos e turbulentos anos 70. Uma delas é a reviravolta sobre o saber psiquiátrico, inicialmente com o escocês Ronald Laing (1927 – 1989), Aaron Esterson e o sul africano David Cooper (1931-1986). Uma questão fundamental para estes autores é a violência cometida pelo saber psiquiátrico e pelas suas práticas no “tratamento” do assim designado “doente mental”.

A crítica epistemológica inicial é de que não seria possível a passagem do modelo de ciências naturais para a relação entre pessoas da forma como aconteceu na formação da psiquiatria, o que só poderia produzir confusão metodológica. Para tentar sustentar o rigor do saber científico clássico, seria necessário lidar com uma relação sujeito-objeto (S-O), ou S vis-à-vis O, onde ambos encontrar-se-iam de forma passiva, quer dizer, o sujeito conhecedor colocaria entre parêntesis sua pessoalidade e o objeto seria inerentemente passivo (uma planta, uma molécula, etc.). Nas ciências humanas, entretanto, isso não é possível nem sequer na separação pineliniana que procurou separar os “doentes mentais” de outras pessoas internadas no século XVIII, período onde se construiu o que Foucault (História da Loucura na Idade Clássica) chama de “A Grande Internação”, onde eram internados todos os tipos de “problemáticos”, passando por alcoólatras, “loucos”, “vagabundos”, “mendigos”, ladrões, magistas, etc, num mesmo espaço de confinamento a partir da condenação moral. Na separação aristotélica das categorias inventadas continuam a existir pessoas ao invés de apenas categorias; é de suma importância lembrar que se existe uma natureza humana o que caracteriza esta natureza é ser justamente possibilidade de possibilidade, ou seja, diante do fenômeno classificatório naturalista é perdida esta condição humana. Hegel chamava o ato lógico de negação e ultrapassagem em um sistema dialético de Aufhebung, o que Sartre posteriormente traduziu para o francês como depassér e foi traduzido para o português como depassagem. Considerando esta situação humana é impossível de uma vez por todas a previsibilidade total de sistemas altamente complexos, assim, em “ciências do homem” não é viável o projeto de Francis Bacon de dominação/manipulação plena do objeto.

Então para a psiquiatria fundar a loucura, tomando a esquizofrenia como loucura prototípica, como entidade nosológica ela deveria propor não apenas uma classificação descritiva dos sintomas (sinais, signos), mas também descobrir uma explicação causal para tal patologia, na medida em que é do fundamento da noção de doença sua atribuição causal. No entanto, não foi possível encontrar, até hoje, uma causa definitiva para a esquizofrenia, embora muito se hipotetize. A abstração do sujeito do seu meio social, como forma de procurar a essência da loucura é outro erro nos fundamentos do conhecimento, na medida em que o sujeito está necessariamente, pré-reflexivamente, no mundo, ou seja, a relação paciente – tratador é eminentemente S-O vis-à-vis S-O, em outras palavras, a relação entre dois sujeitos.

A relação entre dois sujeitos implica pelo menos: o que eu experiencio de mim, o que experiencio que o outro experiencia, o que experiencio que o outro experiencia que eu experiencio e o mesmo vale para o outro sujeito, o qual só tenho acesso a experiência a partir da sua objetivação, isto é, na sua saída de si para o mundo. Neste momento ao objetivar-se o paciente se torna, a partir da racionalidade analítica, objeto de meu olhar que procura a verificação e a falseabilidade de hipóteses e trato o sujeito, com sua totalização[1], como totalidade e ao fazer isso engendro uma desistorização do outro, alienando-o de seu potencial humano. Assim vai se constituindo por meio de uma classificação, onde a analogia se torna homologia, a institucionalização daquela pessoa, pessoa que doravante vai ser atravessada pelo rótulo: inválido. Nesse caminho os profissionais de saúde acabam produzindo enfermidade, pois limitam:

A) As possibilidade de re-organização social daquela sujeito no seu contexto mais amplo, especialmente se o contexto mais amplo não é trabalhado.

B) Que o sujeito viva aquela experiência de desintegração e retorne dela de um outro modo (que possa terminar a viajem que começou).

A alienação do potencial humano por parte dos agentes de saúde se dá através de alguns movimentos, como, p.ex, o divorcio instituído entre práxis e intenção; doravante não é o sujeito que, em seu devir, pratica uma ação que lhe diz respeito, essa ação passa a ser fruto, resultado, de uma doença, de uma entidade, então “não é ele que faz o que faz”, é a Doença, é a alteração serotoninérgica, etc. Os meus atos para mim se tornam meus atos para o outro (eis o que Cooper chama de alienação primária, em diferença da alienação secundária elaborada por Marx). Com isso, evidente, não se quer dizer que todo ato tenha um fundamento consciente e elaborado por um Eu, entretanto, faz parte de algo inteligível para a história daquele sujeito, mesmo quando possui, e a consideração aqui é de todo minha, bases arquetípicas (seja dito também, Laing e Cooper tinham manifestas influencias de Jung).

Existe ainda uma outra questão sobre a “origem de conhecimento” da classificação psiquiátrica. Se a classificação fosse universal ao invés de situacional, ela deveria se repetir de qualquer modo, entretanto, faz-se necessário saber se a classificação “esquizofrênico”, “doente mental”, se produz com mais facilidade em determinados contextos específicos, p.ex, no consultório de um psiquiatra, num Centro de Atenção Psicossocial ou numa internação de “doentes mentais”. Será que um neurótico mais ou menos confuso ingressaria na carreira de doente num ambiente tal e num outro ambiente receberia outro rótulo, outra visão completamente diferente? Qual é, em última medida, a influência da imagem (paisagem, contexto) na construção do diagnóstico psiquiátrico? De acordo com Laing todo traço que supomos ser subjetividade é, em última instância, inter-subjetividade. Não seria possível, neste caso, observar uma essência, coisa-em-si do fenômeno nomeado de sintoma. Ainda é o mesmo autor que nos fala sobre a modificação do comportamento do suposto esquizofrênico diante do avental branco do médico, e nos presenteia com suas palavras na entrevista com Vicenzo Caretti em “Sobre loucos e sãos”: “Muito bem, estou convencido – é uma convicção que deriva de uma experiência de vinte anos e que partilho com muitos outros – que a experiência daria o seguinte resultado (nota: a avaliação dos “pacientes” em diferentes contextos): quando o hipotético esquizofrênico é tratado como tal, o índice de esquizofrenia é dez vezes mais elevado do que quando é tratado como uma pessoa qualquer”. Não é sem razão, portanto, que o surgimento da psiquiatria preventiva nos EUA tenha “resultado” num aumento de casos de psicose.

Tentei produzir aqui um pequeno panorama não sistemático das criticas epistemológicas dos anti-psiquiatras a psiquiatria dita clássica. Espero que tenha sido de proveito para os leitores e que faça emergir questões. A próxima parte, caso ninguém se manifeste propondo alguma outra coisa, será: “Sobre os Tratamentos: Parte II”, isto é, o que a anti-psiquiatria funda no âmbito da atenção a saúde das pessoas com sofrimento psíquico, especialmente as rotuladas como “esquizofrênicas”.

Inté Pessoar!


[1] - Totalização é um termo de J. P. Sartre que abarca uma unidade plural incompleta, isto é, um sistema aberto. Sartre diferencia justamente seu termo de totalidade, na medida em que a totalidade é fechada e inerte, é o que é.

(A Foto é do Ronald Laing).

4 comentários:

Peterson Espaçoporto disse...

Frei Nando, um texto de excelente qualidade! Estou esperando por essa continuação =]

Fernando Beserra disse...

Valeu Peterson!
Também estou esperando ser revelado pela glândula pineal, mas nunca se sabe.. =)

Rui disse...

Magnifico, o seu trabalho é genial. Um torpedo certeiro às patologias civilizacionais...

Rui

Anônimo disse...

E haja anti-missel e estrutura de resistência destas "patologias civilizacionais".. ou político-culturais. De todo tesão contracultural pra cá, de Debord a Tim Leary, de Laing a Castoriadis, uma série de misseis foram disparados, tanto a nível teorico quanto a nível prático e o alvo foi apenas arranhado. Talvez um pouco mais que aggiornamentos, mas sem dúvida, a "estrutura" e os formatos mecanicos e reificados de relação não foram alterados em sua radicalidade.

Se algumas áreas avançaram, com todas as suas ambiguidades (e aqui certamente incluo o campo da saúde mental, do respeito à "loucura", a esta diferença), por outro lado, ainda vivemos a crescente ameaça de governos de extrema direita, e também o não menos perigoso extremo centrismo, com sua postura ideológica de "nem fede, nem cheira".

Abs,
Frei Nando.